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PALESTRA PROFERIDA PELO PRESIDENTE DA ABTL em 24 de março de 2014
PALESTRA PROFERIDA PELO PRESIDENTE DA ABTL
Filosofia como idiossincrasia, ética como fenômeno: sobre o ceticismo
Desejando ser entendido ao comunicar-me, “empregarei a linguagem usual filosófica, pois assim atingirei meu objetivo. Como uma pessoa simples, poderei deliberadamente ‘errar’; com uma pessoa refinada, procurarei falar com toda a correção”. Essa maleabilidade e valorização da dimensão pragmática e instrumental da linguagem também é válida, Sob uma atmosfera idiossincrática, empírica e pragmática
Propor-se a aperfeiçoar o pirronismo, concebendo-o como uma terapia circunscrita à experiência pessoal e autobiográfica, e como um discurso idiossincrático e humanista. Em “Sobre a tranqüilidade da alma e a moderação das afecções”, reflito mais detidamente sobre a ética no interior do ceticismo, tema este pouco explorado. A proposta desta Palestra é estabelecer uma concatenação, mostrando que é possível ver no segundo tema um complemento do primeiro, ou seja, que da fusão do conteúdo de ambos podemos obter um retrato filosófico e prático do cético terapêutico depurado, em outros termos, um retrato filosófico e prático do neopirronismo smithiano.
Até pouco tempo, quando se falava em ceticismo no Brasil, pensava-se única e automaticamente em Oswaldo Porchat Pereira, em particular, nos ensaios do seu livro Vida Comum e Ceticismo, de 1993, um marco dos estudos céticos no país. Nos últimos anos, embora Porchat continue sendo uma referência imprescindível para os pesquisadores brasileiros, os estudos e os estudiosos do assunto se multiplicaram pelo território nacional. Destaco a “Terapia e vida comum”, onde propomos uma “tentativa de depurar ou aperfeiçoar o ceticismo”, tomando por base uma crítica a alguns pontos da leitura habitual que certos pesquisadores fazem das Hipotiposes pirrônicas de Sexto Empírico. Tal concepção chama a atenção não tanto pela originalidade, mas pela radicalidade expressa no interior do ceticismo brasileiro. É a esta concepção, portanto, que dedicaremos à primeira parte das nossas reflexões. Já a segunda parte será toda voltada para “A tranqüilidade da alma e a moderação das afecções”, Embora constitua um artigo de história da filosofia, exploro nele um tema ainda pouco estudado não apenas entre nós: a relação do pirronismo com a ética. A maior parte dos estudiosos brasileiros do assunto, ao que parece, privilegiou questões epistemológicas e historiográficas. Por fim, tentarei articular uma concatenação entre a concepção do ceticismo, expresso no primeiro artigo, com a interpretação da ética no pirronismo, desenvolvida no segundo. Feito isso, poderemos obter um retrato filosófico e prático do cético smithiano.
Todo começo em filosofia é sempre polêmico e arbitrário, segundo os nobres Acadêmicos puderam perceber nesse pequeno preâmbulo. “Terapia e vida comum” tem início com uma arbitrariedade. Tal arbitrariedade, porém, é útil aos propósitos didáticos. Estabeleço uma distinção de tendências no interior da história do ceticismo. Em vez de um ceticismo excessivo e de um ceticismo mitigado, como propôs Hume, por exemplo, dividiremos os céticos entre terapêuticos e fenomenistas. Do lado dos céticos terapêuticos teríamos Pirro, Sexto Empírico, Wittgenstein; filiados ao ceticismo fenomenista estariam Montaigne, Hume, Quine e Porchat. A distinção entre tais tendências é tão-somente analítica. No fundo, ambas seriam as duas faces de um mesmo modo de pensar, pois, como ressalto, “todo ceticismo comporta um elemento terapêutico e um elemento fenomenista” Donde se conclui que a ênfase em um elemento ou em outro é que determinará a identidade de cada ceticismo.
Não nos importa aqui investigar em detalhes o ceticismo fenomenista, tampouco cotejá-lo rigorosamente com o ceticismo terapêutico. O relevante é compreendermos como pensar, ou seja, em que consiste a sua concepção de ceticismo terapêutico. O primeiro passo nesse sentido é partirmos da interpretação tradicional que os céticos fazem do ceticismo pirrônico, matriz do pensamento de muitos fenomenistas e terapêuticos. Compartilho dessa interpretação em larga medida. De acordo com ela, o cético pirrônico seria antes de tudo um homem do cotidiano, isto é, um ser humano de vida prática, social e interagente, alguém com singularidades e trivialidades, enfim, uma pessoa como qualquer outra. Trata-se de um perfil inteiramente adverso ao estereótipo e à caricatura tradicional do filósofo, configurado ora como um eremita ou como um sábio contemplante de essências, refugiado do mundo numa torre de marfim, ora como um ser iluminado que possui a panacéia para todos os problemas humanos, em particular para os de natureza política e social .
Dentre as singularidades do cético pirrônico destacam-se primeiramente sua extraordinária habilidade de pensamento e sua implacável desconfiança em relação à racionalidade filosófica (características estas também presentes em muitos dogmáticos). A destreza dialética e a circunspecção fariam dele um debatedor rigoroso, um respeitável adversário e um grande terapeuta . Tal singularidade conduz-nos a uma outra, talvez mais trivial do que se pretenda, a tranqüilidade (ataraxía). Para obter “esse estado da alma tão agradável” , o cético pirrônico suspende o seu juízo (epokhé) quando se sente incapaz, por falta de evidências ou de conhecimento, de discorrer dogmaticamente acerca de um determinado assunto, ou, em conseqüência de uma equipolência persuasiva (isosthéneia) entre as diferentes perspectivas em confronto (diaphonía), quando não consegue dar assentimento a nenhuma das várias opiniões e argumentos envolvidos numa discussão sobre a Verdade ou essência ou realidade ou natureza ou “em-si” das coisas. As repetições ad nauseam dessa experiência pessoal forçam o cético pirrônico a associar de modo implicativo a tranqüilidade obtida por ele à retenção da crença em relação às proposições de teor absoluto e universal, ou seja, em relação às proposições dogmáticas. Donde se segue que, para o ceticismo clássico, é o dogmatismo em geral a causa das nossas perturbações intelectuais.
Outra peculiaridade do cético pirrônico, segundo a interpretação habitual entre os estudiosos do pirronismo, é a filantropia. Além de ser humano ordinário, de pensador habilidoso, desconfiado e, por conseguinte, de filósofo tranqüilo, o cético pirrônico, quer fenomenista, quer terapêutico, também é um altruísta (característica esta do mesmo modo não tão singular assim). Sexto Empírico confirma esta índole cética e vai mais além: faz do dogmatismo uma doença contagiosa: “O cético, por ser amante da humanidade (philánthropos), quer, o quanto possível, curar, pelo discurso, a presunção e a precipitação dos dogmáticos”. Dito de outro modo, é por amar a humanidade que o cético deseja que todos sejam tranqüilos como ele, que todos desfrutem de sua ataraxía. Para que isso ocorra, ele propõe a sua experiência filosófica e as técnicas de racionalidade nela empregadas como um modelo de terapia contra o dogmatismo. O cético se faz então médico.
Nunca é demais relembrar que Sexto Empírico foi de fato médico e, ao que tudo indica, um médico dedicado a sanar todos os tipos de doenças humanas, inclusive as do intelecto. Sua terapia visa a efetivar-se pelo discurso. Curar por essa via significa para o pirrônico combater a razão dogmática, aquela razão que estabelece estatutos ontológicos e epistemológicos para as coisas e para os eventos. Mediante um “saber argumentar dos dois lados de uma questão para equilibrá-los em termos de persuasão”, somos conduzidos à suspensão do juízo. Com isso, curamo-nos do nosso ímpeto de sempre falar das coisas como elas realmente são, desmantelamos a soberania do Lógos. Em dialeto wittgensteiniano, por exemplo, poderíamos dizer que a cura pelo discurso é entendida como a luta constante contra o “enfeitiçamento da linguagem”, visto que “o Lógos é um grande senhor” . Donde se conclui que o dogmatismo é uma doença que, além de contagiosa, requer cuidados permanentes por parte dos céticos para que recaídas não ocorram. Uma vez curados do lógos — “discurso que pretende dar sentido absoluto àquilo que aparece para nós” ) — pela suspensão do juízo, resta-nos o fenômeno (tò phainómenon), base e critério de todo o filosofar e agir céticos.
Mas o que é um fenômeno filosoficamente falando? É o mesmo comumente falando, ou seja, “o que aparece” (Porchat retrata bem essa situação em seu livro na p. 176). Nas palavras de Porchat, tudo aquilo que “se oferece irrecusavelmente a nossa sensibilidade e entendimento” é fenômeno. “O fenômeno é precisamente aquilo que resta quando se praticou a suspensão do juízo a respeito das teorias dogmáticas”
Tão fundamental quanto o fenômeno é, para os céticos de todos os matizes, a experiência (empeiria). Do mesmo modo é, em última instância — sobretudo no caso dos fenomenistas —, a noção de tekhné, isto é, a concepção cética de ciência, esta entendida em contraposição a epistéme, a concepção dogmática de ciência. Enquanto a epistéme se apresenta como um “conhecimento seguro e adequado da realidade mesma das coisas”, a tekhnécética é despojada de quaisquer pretensões metafísicas. “O pirrônico”, “é, ao contrário, um apologista da ciência empírica, enquanto instrumento humano de exploração sistemática da riqueza infinda do mundo dos fenômenos, que os avanços espetaculares do progresso tecnológico ligado à prática científica podem fazer servir ao bem-estar do homem”. Restritos, portanto, aos fenômenos (nos quais estariam incluídas as inclinações naturais e as afecções), às experiências (dentre elas as dos hábitos, dos costumes e das leis), às instruções das tékhnai , a um discurso sem lógos (discurso do aparecer), e a uma linguagem clara e maleável que facilite a comunicação e o intercâmbio entre os homens, encontramos todos os céticos de raiz pirrônica.
Até aqui não encontramos divergências propriamente de nada. Entretanto, acrescento uma diferença importante entre os pirrônicos: “enquanto o cético terapêutico se limita a fazer a crítica do dogmatismo no campo do discurso, do lógos, o cético fenomenista invade decididamente o campo fenomênico e, sem dogmatizar, explora-o em todas as direções” . Das incursões do fenomenista Porchat pelos fenômenos, por exemplo, resultaram noções como “mundo comum”, “vida comum” e “homem comum”, todas objetadas pela terapêutica Plíniana. Vamos mais além e objetamos também as noções céticas tradicionais de terapia e de filantropia. Nesse momento, o discípulo se afasta um pouco do mestre e delineia com autonomia o seu próprio pensamento...
Afinal, em que consiste o ceticismo Pliniano?
Sabemos que Plínio é um cético terapêutico e que a exposição de seu ceticismo é feita mediante uma crítica à versão tradicional do pirronismo. Seu objetivo é depurá-lo para que seja mais coerente. Nesse sentido, suas divergências contemplam os fenomenistas, mas também os terapêuticos tradicionais. Diante disso, cotejemos os ceticismos terapêuticos.
Embora admita estar imerso inevitavelmente nos fenômenos, o terapêutico, tanto o tradicional quanto o smithiano, não elabora discursos fenomênicos sobre a experiência por julgá-los demasiado arriscados, pois a possibilidade de recaída no dogmatismo é sempre possível quando isso se faz. Sendo assim, seu “objeto de análise, terapia e cura é o discurso alheio, a metafísica do outro” . Ocorre que o cético terapêutico tradicional considera os dogmatismos “erros discursivos”, o que para mim é um paradoxo. Se os dogmatismos são todos “erros discursivos” para o cético, então é possível inferir que o ceticismo impõe-se como o mais racional dos discursos, a via pela qual “todos os homens que quiserem ser inteiramente racionais deveriam trilhar” . Trata-se então de uma arrogância digna de um dogmatismo! Enquanto para os dogmáticos a Verdade (alétheia) é entendida como o resultado do exercício pleno da razão, para o cético terapêutico tradicional a Epokhé) é proposta como a racionalidade por excelência. Em outras palavras, a Alétheia estaria para o dogmático assim como a Epokhé estaria para o cético terapêutico tradicional. Assim sendo, seu discurso e sua terapia impõem-se como absolutos, exclusivos, universais e necessários, características estas tipicamente dogmáticas.
Nem absolutos, nem exclusivos, nem universais, nem necessários: o discurso e a terapia do cético smithiano não têm tais pretensões. Primeiro, porque é uma perspectiva sem teses (é um discurso não-ético) e, em segundo, por não ter uma posição filosófica. E por que não tem teses tampouco posição filosófica? Primeiro, porque se atém rigorosamente ao que aparece e não se pronuncia sobre o que não é evidente; segundo, porque recusa todas as filosofias, inclusive os dogmatismos negativos, ou seja, os negativismos ontológicos e epistemológicos. E por que não se pronuncia sobre o não-evidente e recusa todas as filosofias? Primeiro, porque pronunciar-se sobre o que não é evidente é dogmatizar; segundo, porque ele percebe falta de clareza e de sentido em muitos dos jargões e das articulações discursivas dos filósofos, o que o impossibilitam de julgá-los verdadeiros ou falsos. Ele permanece, portanto, na indeterminação perante as soluções apresentadas pelos discursos que tentam transcender o fenômeno.
A modéstia e o excesso de prudência do cético smithiano parecem maiores do que os do terapêutico tradicional. Persuadir ou dissuadir alguém seria, para ele, por demais ousado, já que não teria verdades para propor. Quanto a curar todos os dogmáticos, confessa ser este um empreendimento para o qual não tem a mínima capacidade.
Ora, como são então o discurso e a terapia no ceticismo smithiano? Em outros termos, como ele relata suas experiências e como ele cura a si e aos dogmáticos?
Comecemos pelo discurso. O discurso de um cético smithiano parte de um “eu” de carne, osso, precariedade e contingência, situado num determinado tempo, local, cultura e meio social. É, portanto, uma razão muito pessoal e singular que se exprime. Trata-se de um discurso de um alcance bastante restrito e inteiramente voltado para o hic et nunc, de uma narrativa confinada às experiências particulares, de uma crônica das vivências autobiográficas, enfim, de um relato confessional, antitético e idiossincrático das afecções (páthos) do pensador. Em última instância, esse tipo de discurso “não consiste senão num simples ‘ãh?!’”. A propósito, escreve Sexto Empírico logo no primeiro capítulo das Hipotiposes pirrônicas: “(...) nossa tarefa presentemente é descrever em linhas gerais a maneira cética de filosofar, esclarecendo inicialmente que as nossas asserções futuras não devem ser entendidas como afirmando positivamente que as coisas são tais como dizemos, mas simplesmente registramos como umcronista , cada coisa tal como nos aparece no momento”). Nesse sentido, o que importa ao cético smithiano é persuadir ou dissuadir a si mesmo. E para que isso ocorra é necessário o debate, seja na forma solitária de um solilóquio, seja, de preferência, pelo diálogo com outros filósofos. No caso específico do diálogo, o cético smithiano propõe uma alteração no papel tradicional do interlocutor; este continuará sendo uma peça fundamental do cético na sua terapia, porém, eventualmente o auxiliará muito mais do que será auxiliado. Em vez de o interlocutor ser corrigido por uma pretensa racionalidade superior do cético, é este que o utilizará para curar-se do dogmatismo ou até mesmo do seu próprio ceticismo.
Filosofia como crônica pessoal, filosofia como confissão, filosofia como idiossincrasia. Além disso, Sexto Empírico escreve que “os céticos enunciam suas fórmulas de modo que elas próprias se auto-eliminam” . Em outras palavras, o discurso do cético seria ainda totalmente descartável, de rápida evaporação, uma vez que não teria nenhum conteúdo a ser assentido, logo, não exigiria do cético nenhum compromisso com ele. Se extravasarmos essa visão da filosofia aos primórdios do pensamento, depreenderemos (idiossincraticamente) que a história da filosofia nada mais é do que a história das idiossincrasias, a história das meras opiniões, em última análise, a história dos, por assim dizer, “achismos” (“Eu acho que...”, “Ele acha que...”, “Nós não achamos que...” etc.).
Indubitavelmente, trata-se de uma conclusão que, à primeira vista, causa um enorme mal-estar e até uma certa vontade de rir. Tal conclusão radical parece invalidar (e desmitificar) vinte e cinco séculos de pensamento. Idiossincrasia platônica, confissão hegeliana, crônica nietzschiana, opinião marxista, “achismo” cético. Embora não assevere isso de forma alguma, o texto pliniano sugere-nos tal idiossincrasia. Poder-se-ia objetar que a idéia de "mera opinião" ou que o termo “achismo” seriam inadequados por serem pejorativos, por consistirem num posicionamento irrefletido, sem a mínima argumentação, o que não ocorreria com os grandes sistemas e com as grandes correntes filosóficas . Mas não seria a idiossincrasia um eufemismo de "mera opinião" ou de “achismo” na medida em que idiossincrasia seria a disposição de temperamento e o modo próprio de cada indivíduo de ver, sentir e reagir diante das coisas que se lhe impõem, isto é, dos fenômenos? Ainda nesta direção, não seriam as consideradas célebres filosofias "meras opiniões" ou “achismos” complexos, pretensamente profundos, rigorosos, refinados e embevecedores a despeito das suas intenções contrárias? Não seriam elas sofisticados jogos de linguagem, rebuscadas construções retóricas, ao passo que as "meras opiniões" e os “achismos” seriam discursos vagos e grosseiros dos não-filósofos do cotidiano e dos filósofos que não se sentem capazes de ir além deles? Ademais, a empeiria da diaphonia filosófica mostra que o que não faltam às filosofias são método, rigor lógico e argumentações complexas e refinadas, no entanto, mesmo assim, não conseguem estabelecer o consenso em relação às suas pretensas verdades. Isso prova que rigor, método e sofisticação não são vias pelas quais a realidade indubitável das coisas se manifesta.
Uma terapia mais coerente com a quietude não teria o fito de persuadir ou de dissuadir o interlocutor, ou seja, consistiria antes em uma terapia auto-reflexiva de descrição do próprio itinerário filosófico: “eu me curo; quanto aos demais...” . A idéia de uma terapia genérica estaria vinculada à idéia de um homem genérico, isto é, à noção de um “homem comum”, que vive uma “vida comum”, em um “mundo comum”. Para o cético smithiano, trata-se de noções que ele não verifica na sua experiência e por isso o desagradam: “É assim que eu me sinto com relação aos homens em geral: tão pouco conheço a seu respeito, que prefiro dizer que nada conheço, ouso menos ainda fazer uma descrição fenomênica genérica” . Além disso, qual seria o critério para definir com segurança a generalidade que comporta a noção de “comum”? “Minha vida não é nada comum”. Enquanto muitos pertencem a uma minoria que não crê em Deus, que não têm superstições e que se dedica aos estudos dos textos de Sexto Empírico e de Wittgenstein. Ademais, ao contrário do fenomenista, o terapêutico smithiano não verifica nenhuma unidade no mundo, logo, não percebe um “mundo comum”. A idéia de “comum”, portanto, seria para o plinianismo um resquício dogmático presente no ceticismo fenomenista, especificamente, no de Porchat.
A radicalidade do pirronismo plianista expressa-se sobretudo na sua interpretação da filosofia como idiossincrasia, como um gênero particular de literatura e como estilo de vida, porém, atinge o seu ápice quando propõe ao cético duvidar do seu próprio ceticismo. “Um verdadeiro cético será desconfiado de suas dúvidas filosóficas, bem como de sua convicção filosófica” . A ela podemos acrescentar outra de Cioran: “Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica”. Todavia, o artigo termina com um posicionamento ético, e este é inequívoco: o cético é um humanista. O desenvolvimento desse humanismo — o qual vimos ser moderado.
Não nos esqueçamos que as inclinações naturais, as afecções, a formação familiar, a educação, os costumes, as leis e a as experiências pessoais norteiam a conduta do cético. É importante enfatizar também que o cético valoriza a vida de um modo geral, em especial a vida cotidiana, o que invalida qualquer intenção de associá-lo a algum tipo de pessimismo, como faz, dentre outros, Cioran .Assim sendo, o pirrônico, poderá, por exemplo, como qualquer outro ser humano, ter o desejo de ser generoso, sem com isso ser incoerente ou dogmático. Ou, como afirma Sexto, “dadas às leis e os costumes da tradição consideramos em nossa vida cotidiana a piedade como um bem e a impiedade como algo ruim” . Ética é perfeitamente compatível com o pirronismo, contrapondo-se, assim, à interpretação dogmática que faz do pirrônico um pensador indiferente, frio, passivo e descompromissado, um egoísta preocupado apenas com a sua própria ataraxía, um autômato rigidamente determinado pelos seus instintos e que reage mecanicamente às afecções e aos estímulos.
Em vista disso tudo, se vincularmos “Terapia e vida comum” — de conteúdo essencialmente filosófico — a “Sobre a tranqüilidade da alma e a moderação das afecções” — texto que trata da ética pirrônica numa perspectiva histórica e apologética, o que denota a afinidade do autor com ela — obteremos, ao que parece, uma configuração suficientemente compreensível do ceticismo de Smith. Em primeiro lugar, Smith seria, na esteira de Porchat, um neopirrônico, todavia, um neopirrônico que privilegia, ao contrário do seu mestre, o caráter terapêutico dasképsis em detrimento do seu caráter fenomênico, e, por conseguinte, das idéias de “homem comum”, “vida comum” e “mundo comum” a este vinculadas (20). O neopirrônico smithiano, por assim dizer (21), seria um pensador modesto, humanista, tolerante, compreensível, moderado e cônscio dos limites da sua terapia e da precariedade da sua razão. Constituído de inclinações naturais, influenciado pelos costumes e pela cultura, e dotado de singularidades e de trivialidades, ele vive cotidianamente entre os homens e imerso nos fenômenos, com os quais quer se comunicar (22) e em relação aos quais se manifesta idiossincraticamente, à maneira de um cronista; é um cético que duvida do seu próprio ceticismo, sem com isso se entregar ao desespero; é um ser humano que, como todos os demais (ao que parece), quer ter uma vida tranqüila e feliz; em outras palavras, é alguém que estuda as Hipotiposes pirrônicas sem deixar de jogar tênis, ir à praia ou comer pizza com os amigos após o cinema. Sendo assim, façamos nosso o julgamento de Cioran acerca do ser humano pirrônico e do próprio ceticismo: “Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada”
PALESTRA PROFERIDA PELO PRESIDENTE DA ABTL
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